Caderno de Recortes #94 - Um circo passa/Newton/Dança para cavalos/Papa Highirte/Arnold Böcklin
E aí, meus caros circenses? Como estão todos?
Passei um tempo de férias, li alguns livros bacanas (já falei de alguns para vocês, um deles o gigantesco Infinite Jest). É fácil perceber que eu gosto muito de ler.
Por um tempo tinha perdido toda minha concentração e fiquei um período longo com pouquíssimas leituras, depois retomei e sempre fico feliz de descobrir livros novos (aceito dicas, sempre) e ler alguns dos diversos livros que eu tenho guardado em um estoque interminável de não lidos.
Quase todo mundo que gosta de ler tem mais livros do que será capaz de ler. Sempre tem uma promoção imperdível, um presente ou uma indicação que você tem como certo que se não comprar naquela hora, vai esquecer para sempre.
Curiosamente a fila de leitura (pelo menos a minha) não é linear. As boas práticas de estocagem (conforme aprendi na disciplina Prática de escritório modelo no curso téc. de Contabilidade) dizem que se deve seguir o acrônimo FIFO (first in, first out) ou seja, vai lendo na ordem que comprou, mas, no geral, o desejo de ler aquele livro que acabou de chegar muitas vezes supera qualquer lógica e, às vezes, do nada você quer ler aquele que comprou já tem muito tempo e que está soterrado em uma pilha quase impossível de alcançar. Não tem explicação, ele está lá, já tem alguns anos, mas agora, por algum motivo, chegou a vez dele.
Enfim, chega de divagações por enquanto.
Um circo passa
Patrick Mondiano é um autor curioso. Escreve de uma forma agradável, histórias cotidianas, curtas, envolventes. Mestre na arte de não dar respostas, de não se perder para além do essencial, de deixar o leitor tão no escuro quanto seus personagens. Um circo passa, publicado em uma edição linda da Carambaia é um belo exemplo.
Tudo que é supérfluo permanece um mistério insondável na história do protagonista Jean que, aos 18 anos, conhece uma garota misteriosa na Paris dos anos 60. É possível que o leitor mais ansioso odeie a passividade do jovem, mas isso não importa para Mondiano.
Curioso que, com um prêmio Nobel na estante e um texto bem acessível, ele não seja mais popular no Brasil.
A edição da Carambaia conta com a tradução de Bernardo Ajzenberg. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo, mas ele é meu tradutor favorito e, agora que estou aprendendo francês, as escolhas dele parecem ainda mais preciosas. Esse é um livro que, com certeza, vou guardar para usar como guia na leitura do original assim que meus estudos permitirem.
Newton
Não precisa de muito para eu me interessar por um livro. Li uma resenha sobre Newton, romance do advogado criminalista e colunista Luís Francisco Carvalho Filho, e já queria o livro.
Como eu disse, a ordem de leitura é meio caótica. Já tem um ano que eu queria o título, mas demorei para comprar, porque os livros tem sua hora certa para chegar.
Na capa do livro, entre parênteses, está a indicação de que se trata de um romance. Não acho essa definição precisa, eu diria que é um ensaio ficcional sobre a burocracia como fator limitador de direitos humanos.
A história de Newton, um escritor sem sobrenome ou qualquer documento que prove sua existência, é apresentada na forma de transcrição de diálogos. Gosto sempre de lembrar que, segundo Amélie Nothomb, o diálogo é a forma escrita mais próxima da tortura. Isso vale em dois espectros: o do universo dos personagens que são apresentados em uma batalha constante de frases; e o ponto de vista do leitor que não tem subsídios para imaginar nada da cena, apenas vozes no escuro se digladiando. Cabe ao leitor formar as emoções e os cenários, cabe ao autor o trabalho minucioso para inserir nas falas as pistas necessárias.
Nesse jogo, Carvalho Filho cria uma trama envolvente onde ninguém tem nome, apenas funções sociais, exceto o narrador que tem um nome, mas nenhum papel para provar sua existência.
É um livro intrigante, instigante, muito bem construído para envolver o leitor do começo ao fim.
(Parêntesis aqui: quando eu escrevia resenhas para o UHQ era normal eu ler várias HQs e empilha-las na mesa até a hora que eu escrevesse o texto e movesse elas para o destino final. É relativamente fácil fazer isso com quadrinhos, você lê uma revista por dia com muita tranquilidade e descarrega todos os textos em um fim de semana. Isso não é tão comum com livros, mas, cá estou, com uma pilha de livros curtos fazendo a mesma coisa.)
Dança para Cavalos
É estranho dizer isso, mas depois de anos como leitor finalmente descobri a poesia além daquilo que é ensinado na escola, agora não deixo de alternar uns poemas entre as leituras para entender melhor esse universo.
O livro de Ana Estaregui me chamou atenção pelo título. Confesso que não é um dos livros que eu mais gostei [uma vez que não entendo nada sobre poesia, resta o gosto ou os sentimentos que o livro desperta], mas, como todas as coletâneas de poesias, tem sempre um ou outro que gruda na gente.
58.
o pão refaz o dia
o trigo em farinha revive o solo
a luz do sol
os desejos da terra
na umidade da boca
o pão, calor e fermentação,
incha a manhã de espaço
preenche o quarto e a sala
o tempo refaz o sol
a cada manhã e mais
refaz também a noite
no mover das leveduras
refazer o pão, começar de novo,
sovar a massa e estender as horas
o instante dourado do trigo, esperar
nossa espécie faminta
Papa Highirte
Essa montagem do grupo Tapa para o texto de Oduvaldo Vianna Filho é um exemplo excelente do que bons textos não precisam de muita atualização para seguirem pertinentes.
A peça trata de um ex-ditador exilado vivendo entre a tormenta da perda do poder e as maquinações para retornar ao seu país.
Um dramaturgo mais didático e juvenil não perderia a chance de enfiar referencias ao ex-presidente do Brasil (momentos de paralelo não faltam para isso), mas o diretor Eduardo Tolentino de Araujo respeita a inteligência da plateia e a pertinência do texto para o momento em que vivemos.
A ficção é uma forma ótima de processarmos uma série de eventos que pesam nas nossas vidas e quanto mais é deixado espaço para o público formar suas próprias conexões, essa catarse individual fica ainda mais poderosa.
Nem preciso dizer que uma peça do grupo Tapa tem bons atores e que o protagonista representado por Zécarlos Machado está perfeito em cena.
Serviço
Quinta, Sexta e Sábado às 20h00, Domingo às 18h00
10 de Setembro a 1 de Outubro
Teatro Aliança Francesa - Rua General Jardim, 182, São Paulo - São Paulo
Para quem quiser conhecer o texto, ele foi publicado aqui
Pintores
Para encerrar, seguimos com o suíço Arnold Böcklin (1827/1901) [por falar em Suíça, a gigante Nestlè comprou essa semana a rede nacional Kopenhagen mostrando o quanto estamos no fim da cadeia alimentar. Mesmo as empresas nacionais “grandes”, que tomaram os lugares das lojas pequenas de bairro são consumidas por alguém maior]
Esse quadro é bem curioso porque escondido no meio dele, tem a cobra andando pelo corpo, indicando que esse não é mais um dos típicos estudos de modelo vivo que todos os pintores fazem. Tem uma história ali.
Esse trabalho dele com criaturas mitológicas é fantástico porque é um exercício de criação gigante e há um esforço do artista de manter o realismo, o movimento e tudo mais nessa cena que só se passa na cabeça dele.
Esse quadro é outro que é uma graça. A expressão e o movimento da criatura (Pan talvez?) são lindos.
Esse quadro é uma cena épica fantástica. Poderia ser o cenário de qualquer filme moderno de ficção com ilhas misteriosas.
P.S.1:
Para quem não assina a newsletter da
sugiro ler a edição dessa semana, é muito triste, mas é lindaP.S.2:
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