Caderno de Recortes #72 - Sheriff of Rottingham/AI, AI, AI/Renoir
E aí? Como vai meu pequeno bando de pessoas felizes?
Santo Frei Tuck
Nem preciso me alongar nesse tema, porque é tão recorrente que já foi citado aqui mais de uma vez.
Os ricos (ricos ricos, não quem tem uma renda de uma casinha de aluguel ou um bar que está a um processo trabalhista de ir a falência) têm a convicção que não devem pagar impostos.
Tem duas linhas básicas de raciocínio. A escrotona declarada: não uso o SUS, escola pública, etc então quem usa deve pagar mais imposto por isso. E a messiânica delirante: o papel do rico é criar empregos e fazer o país funcionar.
A questão é que a desigualdade no Brasil é tão gritante, a tributação é tão desequilibrada e pesa tão agressivamente sobre os mais pobres para favorecer os ricos que até o camarada Paulo Guedes tentou cobrar um pouquinho mais de imposto dos coleguinhas de bolso cheio. Na época cheguei a fazer umas continhas para mostrar como uma família herdeira de um império comercial pagava menos de imposto do que um trabalhador (quem perdeu, está em uma edição antiga aqui).
O fato é que pessoas como o tio Abílio não conseguem conceber um mundo em que quem tem um histórico de pobreza e condições desiguais de estruturas social, familiar, educacional e alimentar tenha direito a qualquer conforto na vida e, muito menos, uma chance de competir com seus colegas e parentes da elite. Para isso eles inventam a falácia tentadora de que quando o rico fica mais rico, todos enriquecem juntos, um movimento de multiplicação; quando, na verdade, a história econômica de países como o Brasil mostram que, enquanto cada vez menos pessoas da elite passam dos milhões para os bilhões, o número de pessoas na pobreza só aumenta, ou seja, é um sistema em que predomina a concentração.
Inteligência Artificial
A nova geração de algoritmos que criam imagens e textos a partir de comandos tem levantado uma série de polêmicas curiosas.
Antes de mais nada é interessante notar que depois de anos de investimento na robotização do trabalho braçal, reduzindo os empregos de operários (o que, aliás, remete a edição passada), a mecanização fez um avanço extremo no campo do trabalho intelectual.
Robôs com algum nível de aprendizado e capazes de feitos surpreendentes não são exatamente uma novidade, em 1997 o programa Deep Blue venceu o mestre enxadrista Kasparov. Mas, até ali, podíamos alegar que o xadrez é um jogo de cálculos e possibilidades matemática contidas, algo diferente de criar uma imagem ou um texto.
Sempre que uma inovação dessas surge, a nossa tendência aponta para extrapolações apocalípticas. Com as AIs, os escritores, jornalistas, pintores e etc perderão sua fonte de renda e, sem eles, não haverá ideias, estilos ou tendências criativas novas para alimentar as bases de dados das AIs. Com isso, a arte tenderá para um repertório repetitivo, massificado em que tudo será um grande dèjá vu sem graça (mais ou menos como as produções da Netflix que foram feitas baseadas em algoritmos de preferência para entregar algo “novo”, mas muito parecido com tudo que uma maioria gosta.
Dizer isso é um chute tão grande quanto foi dizer que a TV mataria o rádio, mas tem um ponto aí, obviamente. Com um pouco de treino um editor pode, em vez de passar uma pauta para um redator ou um ilustrador, cortar o caminho e fazer direto suas produções via AI. Ou pode encontrar pessoas dispostas a fazer essa etapa de programação e seleção por uma fração do valor que um artista tradicional faria.
É claro, a queda de qualidade pode ou não ser percebida e pode ou não ser uma questão. A história mostra que sempre que há uma ramificação entre processo massificado barato e processo “artesanal” de qualidade, por mais que ambas as opções sigam existindo, uma é servida com altos lucros para a grande massa da população que tem pouco dinheiro, enquanto outra passa a ser reservada para uma elite que pode bancar uma qualidade que, de brinde, se torna exclusiva.
Mas esse caminho da discussão é inútil. Além de não levar a nada de novo, a tecnologia é inexorável, uma vez posta na rua vão surgir, por exemplo, editoras que serão fábricas de salsicha, com livros inteiros escritos e ilustrados por AI. Ao mesmo tempo que seguirão por aí as edições artesanais com capa de couro vegano costuradas a mão.
O que realmente me interessa não a discussão teórica sobre “o que é arte”, mas a parte ética do processo de formação dessas AIs.
Peguemos o caso das AIs de geração de imagem. Para adquirir a a capacidade de verter palavras em algo visual essa tecnologia teve que ser alimentada com um banco de dados extremamente complexo e sempre em expansão de imagens. E, qual a origem dessas imagens? Sim, tudo que todo mundo postou na internet.
Ou seja, as AIs pegam a produção dos artistas e cobram para criar um mix novo.
Um parêntesis aqui: sabe quando um site pede que você clique nas fotos que tem um semáforo ou que escreva uma palavra de uma imagem para provar que você não é um robô? Essa ferramenta tem um propósito maior que é ensinar inteligências artificias a reconhecer textos em imagens (permitindo digitalizações mais eficazes) e reconhecer elementos em imagens, permitindo que uma AI aprenda a olhar uma foto e associar a palavra semáforo com representações visuais diversas.
Ou seja, a todo momento os artistas que postaram um trabalho na internet ajudaram involuntariamente e sem qualquer remuneração a criar essa tecnologia que fará o trabalho deles mais rápido e mais barato do que eles.
Sim, muitas dessas empresas já disseram que podem tirar dos seus bancos de dados as artes que qualquer pessoa que solicitar. Mas isso é rechear o porco pelo cu.1 A pessoa tem que saber que está sendo usada (e essa listagem não está disponível) para pedir que não seja usada.
E o direito autoral? Bem isso se dilui de tantas formas que é muito complexo. As artes não são usadas na integra, só como elementos de construção, então aí já morreu. Fora que já tem aí mais de duas décadas que colocamos voluntariamente conteúdo de graça na internet. É legal tuitar, postar uma foto ou mesmo mandar uma newsletter. Quem cria o conteúdo fica em um paradoxo: eu quero que esse texto chegue até vocês, mas, para isso, me sujeito a uma AI absorvê-lo em um banco de dados para criar artigos debatendo AIs.
Enfim, esse tema é sem fim e inescapável. A história da humanidade é essa, a maior parte do progresso esconde um mar de suor, sangue e vítimas anônimas. Nada muda de fato.
Último parêntesis: a discussão “aí, os alunos não vão mais aprender porque vão fazer trabalho com AI” é mais velha que andar para trás. O aluno, no fim, vai aprender o que ele quiser e o que entender que é importante para ele. Se ele compreender que fazer o trabalho é parte do processo, funciona, se não, pouco importa. Fazer por fazer qualquer coisa, seja com lápis ou com AI, nunca acrescentou nada na vida de ninguém.
Pintores
Seguimos com nossos pintores antes da inteligência artificial, no caso, Pierre-Auguste Renoir
Quando estava pesquisando as imagens, eu me encantei demais por esse quadro. Ele é praticamente um representante da geração posterior a Renoir, o pós-impressionismo. É muito lindo o quanto essa pintura é indefinida e, ao mesmo tempo, realista.
Gosto muito desses quadros mais “soltos” do Renoir, sem se preocupar com fundo, mas montando toda a estrutura essencial.
Os estudo de natureza morta são um clássico da pintura. Algo interessante é que, se você olhar o todo da obra de Renoir, ele não era um bom desenhista de anatomia humana (óbvio, pelas imagens que eu postei por aí, não dá para sentir isso, por conta da seleção que eu fiz), mas ele tinha uma habilidade ímpar com natureza morta.
Eu acho esse quadro muito interessante. A luz é bonita, a roupa tem muito movimento, o bebê tem aquela cor que dá uma sensação de que ele está vivo aqui na nossa frente e, ainda assim, vemos tudo como uma certa névoa, pois é um desenho sem cortes secos, só fusões e transições muito suaves.
MCCULLERS, Carson. O coração é um caçador solitário. Carambaia, São Paulo, 2023