Caderno de Recortes #90 - Ausente por tempo indeterminado/Primeira pessoa do Singular/As bruxas de Salém/Columbano Bordalo Pinheiro
Como vão, queridos contistas?
Ausente por tempo indeterminado
Esses dias respondi uma pesquisa sobre o que me fazia comprar um livro. É bem curioso esse processo, não sei vocês, mas tem uma série de fatores subjetivos que se somam e, muitas vezes, quase não tem nada a ver com o teor do livro. Por exemplo, essa coletânea de contos do chileno Julio Ramón Ribeyro (1929-1994) me pegou pelo título. É claro, como disse, nunca é só um fator. Eu gostei bastante de um livro que eu li da Carambaia e essa editora já entrou no meu radar permanente. Daí, quando mandaram o e-mail com o assunto enigmático Ausente por tempo indeterminado, que se revelou o título do lançamento deles, já tinha certeza de que queria o livro.
De fato foi uma ótima aquisição para conhecer Ribeyro. O livro trata de histórias cotidianas, algumas aparentemente mais pessoais do que outras e, de cara, já pega o leitor com o excelente Só para fumantes, uma retrospectiva da vida do personagem (autor?) focada nos consumo de cigarros dele. O livro tem outros textos ótimos, alguns mais realistas, outros mais fantásticos, mas é, do começo ao fim, uma série de pequenas joias.
A edição encerra com um ensaio bem interessante sobre o autor escrito por Alejandro Zambra.
Primeira Pessoa do singular
Quem acompanha essa newsletter há algum tempo sabe que eu sou fã do escritor japonês Haruki Murakami. Ele é famoso pelos seus livros extensos que chegam a ter dois ou mais volumes, então, essa coletânea de contos é uma boa surpresa.
Mesmo eu que goste de livros curtos me sinto tentado a dizer que Murakami funciona melhor com seus textos longos que promovem uma imersão profunda do leitor, mas não é possível desprezar essa coletânea, ainda mais se a considerarmos como um mapa para o universo de Murakami.
Todos os contos estão escritos em primeira pessoa e subentende-se que o personagem principal é o próprio Murakami. A questão é que não dá para saber quanto daquilo é verdade, até porque “ir a um escritor pedindo a verdade é como pedir leite para o açougueiro” (certamente essa citação é imprecisa, já que a minha memória não é das melhores, mas é da peça Variações Enigmáticas de Eric-Emmanuel Schmitt interpretada por Paulo Autran em 2002).
As situações vividas ali pelo personagem (autor?) seguem a mesma linha de um cotidiano trivial tocado por um elemento místico fantástico e mexe em sentimentos profundos que são bem escritos demais para serem inventados.
Além desse mundo onírico típico do Murakami, o que sempre me deixa encantado são as metáforas visuais que ele cria com suas construções intencionalmente longas de mais para não poderem ser chamadas de poéticas.
As bruxas de Salém
A Cia. Os Satyros de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez montou (e atualizou) o texto de Arthur Miller.
Ao meu ver a peça tem alguns problemas: o protagonista Henrique Mello é um pouco exagerado e não oferece o drama e o sacrifício que o papel pede, além disso, o figurino poderia ser um pouco mais cuidadoso com detalhes como os calçados dos personagens.
Mas isso são questões menores que não prejudicam o todo. O que me incomoda mais é a atualização desnecessária do texto em um estilo que lembra muito o Zé Celso, mas sem o conjunto de elementos que fazia o trabalho dele funcionar. A peça de Athur Miller, escrita na época em que o Macarthismo perseguia comunistas em todas as sombras dos americanos, já é uma alegoria clara para o que vivemos nos últimos anos. Exemplos de estúpidos sendo manipulados com mentiras para caçar inimigos que nunca existiram abundam. Dessa forma, eu considero um didatismo excessivo insistir em incluir cenas como a oração ao pneu ou o surto coletivo de 08/01. Eu entendo que talvez hoje seja necessário ser didático e que essas piadas funcionam para a plateia, mas já deu, né? Passou da hora de desbolsonarizar a esquerda e a direita, de parar de tratar de bobagens e seguir para problemas sérios.
Independente disso tudo, é preciso celebrar a visão artística global de Rodolfo García Vázquez. O momento de entrada da peça já coloca o público em um clima insólito e, mesmo as cenas que me desagradaram estão esteticamente amarradas na dramaturgia. A cena do pneu marca a troca das lanternas a óleo sinistras por leds de celulares que fecharão a saída da peça. A cena do 08/01 fecha com intensidade a primeira metade da narrativa e deixa o cenário armado para o que vem a seguir.
No todo As Bruxas de Salém é uma peça que vale a pena ser vista naquele espaço peculiar que é o teatro d´Os Satyros.
Mais informações https://satyros.com.br/em-cartaz/
São Paulo sem papel
Enquanto os outros caçam fantasmas, Thorcísio e o Secretário da educação e CEO da Multilaser (wtf????) seguem trabalhando.
É curioso que a educação pública não tem muito mais por onde ser desmontada. Os índices de interesse nas carreiras docentes só caem, a precarização da infraestrutura escolar é evidente, mas, mesmo assim, o Sr. Multilaser conseguiu achar um osso inteiro nesse esqueleto surrado para quebrar.
Columbano Bordalo Pinheiro
Como havia dito na edição passada, depois de ler uma coletânea da poeta e contista portuguesa Florbela Espanca fui buscar alguns pintores lusitanos, então, essa semana continuamos com o Columbano Bordalo Pinheiro
Esse não é um retrato particularmente bonito, mas eu sempre gostei muito dessa pose com o rosto 3/4, a sobrancelha levantada e uma gola ou algo recortando o rosto na altura do pescoço.
É curioso o quanto essa imagem é diferente dos demais trabalhos do pintor. Tem toda cara de encomenda que ele fez com muito esmero e pesando a mão no realismo.
Esses registros ao ar livre de pintores trabalhando sempre são um clássico bacana. Veja como o cenário é resolvido de uma forma muito rápida e simplificada e, ainda assim, tem detalhes o suficiente para se entender a cena como um todo.
Nada mais clássico que uma natureza morta.
Por fim um retrato bem curioso com uma expressão que passa todo o cansaço do mundo na nossa mente.
P.S.:
Obrigado a quem se inscreveu e leu.
Agradeço imensamente a quem puder compartilhar esse e-mail ou divulgar nas redes sociais.
Se quiser comentar algum tópico ou sugerir pautas para a newsletter, basta responder o e-mail que você recebeu.
Os links para me encontrar e ler as edições anteriores do caderno de recortes estão aqui https://linktr.ee/diletante
No linktr.ee você encontra, também, meu link para amazon, se puder clicar nele antes de fazer suas compras, já me ajuda muito.
Abraços e até a próxima.