Caderno de Recortes #88 - Distanciamento histórico/M4no/Rinha de intelectuais/Alexandre Reider
Como vão meus leitores encantadores?
Ideias roubadas
A árvore e a floresta
Grande parte do nosso aprendizado envolve olhar a história como um todo, do passado até aqui. E é fácil, até sedutor, pensar os eventos em uma linha cronológica de causas e consequências em que tudo está bem classificado. Muitas teorias, inclusive, dependem desse olhar distanciado. A evolução proposta por Darwin, por exemplo, não ocorre de uma geração para outra, trata-se de um processo complexo que o indivíduo não é capaz de observar por si só, pois, pela própria essência da seleção natural, gerações têm que morrer e gerações novas precisam surgir.
É um paradoxo de proximidade/distanciamento; a pessoa que observa os detalhes de uma árvore sem saber que está em uma floresta pois o mundo dele sempre foi aquele, uma infinidade de plantas para todos os lados que ele olha. Presenciamos eventos sem nem mesmo imaginar que terão consequências. O que parece trivial para nós hoje pode acumular camadas de sedimentos que, observadas do futuro distante terá um nome e será classificado como um evento histórico. Ao mesmo tempo que grandes tragédias ou triunfos podem ser esquecidas em poucas décadas por serem eventos autocontidos.
Eu penso nisso sempre que vejo o trabalho de artistas jovens. Normalmente nos fixamos em referências que são gigantes da sua arte no momento em que vivemos. No teatro olhamos para pessoas como Zé Celso, Antunes Filho, Augusto Boal, Plinio Marcos como ícones insubstituíveis, basicamente porque temos o distanciamento suficiente para olhar no passado e colar o trabalho deles em um período já classificado.
Em uma descendência dessa geração (não gostaria de dizer derivativa, porque parece muito taxativo) temos Gerald Thomas, Mario Bortolotto, Nelson Baskerville e tantos outros em atividade que são artistas que tem destaque suficiente para que tudo que eles façam hoje seja relevante, mas, de certa forma, ficam na mente da geração deles como alguém na sombra de outros gigantes.
Isso vale para toda arte e é constante no desenrolar do tempo. É a grande fatalidade da cultura. É difícil ver o nascimento de grandes mestres porque só vamos entender que estávamos diante de um trabalho divisor de águas muito tempo depois.
M4no
Essa semana eu vi M4no, uma peça de Gabriela Lemos que está no Espaço Garganta, um palco bem alternativo que ocupa a sobreloja que um dia foi a Casa Elefante.
Eu conheci o trabalho da Gabriela Lemos com a peça Mesa para Cinco, uma dramaturgia curiosa, montada dentro de um bar. A peça me pegou, tinha suas limitações, mas o texto era excelente. Imediatamente eu pensei: quero ver a próxima peça dela.
Uma das crueldades da arte é que só se aprende fazendo. Só se melhora se expondo a críticas de todos os tipos. Só que tem artistas que tem algo de especial, algo indefinível que se a gente olhar com bastante atenção compõe aquilo que passamos a chamar de “estilo” da pessoa, um elemento indefinido, sempre em transformação que, muitas vezes, nem o próprio artista reconhece de pronto.
E então Gabriela vem com M4no e qualquer um que assiste pode ver que ela pensou com muito cuidado em todos os detalhes.
O figurino feito por Gi Marcondes, por exemplo, não só é perfeito como tem uma função narrativa, ele destaca o “narrador”, esse observador quem está em cena sem ser visto pelos personagens e que compõe todo o ambiente e supre tudo que não pode ser explicitado ali.
Os atores estão muito bem dirigidos, com um trabalho físico extremamente competente que é muito necessário para encenações em espaços minúsculos em que o público e a cena estão quase juntos. A cinética de cada ação tem que transparecer a intenção. Algo que tem um auge absurdo no primeiro ato quando Thomas Marcondes agarra Natalia Coutinho. Aliás, vale um destaque para Haroldo Miklos que faz o narrador desse primeiro ato e para a participação diabólica de Rafael Américo no segundo ato.
Como em Mesa para Cinco, essa é uma peça de texto, algo bem claro no terceiro e último ato. Confesso que o final me pegou de surpresa. Muitas vezes, quando a gente está envolvido em uma história começa a pensar: como que vai acabar. E estamos tão acostumados a finais comerciais bobos que tendemos a achar que o autor se colocou em um beco sem saída. Não tem nada melhor do que descobrir que tinha uma saída perfeita ali que a gente não conseguiu calcular.
Uma amiga disse outro dia que Bortolotto é o último dos undergrounds, como fã dele fico feliz em poder dizer que tem outras pessoas renovando a área com um underground moderníssimo.
(Tem mais duas apresentações ainda, mas torço para que venham mais depois. Ingressos aqui https://www.sympla.com.br/evento/m4no/2035207)
Rinha de intelectuais
Saiu uma entrevista bem interessante com o neurocientista Miguel Nicolelis esses dias falando sobre IA e confrontando Yuval Harari
Agora, tretas a parte, o ponto interessante da entrevista é esse aqui:
Pintores
Já que estamos no tema de artistas contemporâneos em atuação, queria dedicar essa semana ao trabalho do Alexandre Reider.
Reider é um pintor e professor com enfoque em pintura a óleo de paisagens. Ele tem uma linha pós-impressionista, com uma arte figurativa de pinceladas bem marcadas. Como bom pintor de paisagens ele tem um domínio absurdo do uso da luz na cena e da perspectiva atmosférica (recurso visual que cria profundidade por meio da variação tonal em espaço muito amplos, como a floresta no “fundo” da primeira pintura).
Reider trabalha muito com pintura ao ar livre, plein air, tanto que esse é o nome do estúdio/escola dele.
Aliás, o estúdio dele está bem no centro de uma área que foi totalmente derrubada para construção de prédios gigantescos. Recentemente a Cyrella, que tentou comprar a casa dele, fez o favor de chacoalhar toda a estrutura do estúdio e derrubar quase tudo lá dentro. Sobre esse tema, vale ler essa entrevista com o sr. Filippo, o vizinho do Plein air que acompanhou toda a mudança de uma área que muitas vezes nos iludimos achando que sempre foi dominada pela elite.
As imagens foram tiradas do site do Reider e alguns quadros estão inclusive à venda.