Como vão, meus caros? Ficaram bem nos feriados? Eu tenho vários temas empilhados na minha mesa para falar com vocês, pode ser que alguns envelheçam antes de virarem assunto aqui, mas azar deles, porque hoje eu só quero falar de um assunto: Jonathan Ames.
Bored to death
Conheci Jonathan Ames por causa desse seriado da HBO. É uma comédia muito peculiar que mistura autoficção e a premissa do livro A Cidade de Vidro de Paul Auster. A série é de 2009, mas ainda está disponível na HBO.
Bored to death é um grande indicativo do que era a obra de Ames na época. Um escritor tinha publicado com algum sucesso no nicho da literatura alternativa I Pass Like Night, que falava com muita sinceridade sobre alcoolismo, vida a deriva e toda a sorte de obsessões e defeitos do autor, representado por seu personagem Alexander Vine na sua primeira novella (como ele gosta de se referir ao romance por ser um tanto curtinho) .
Depois ele transita com uma série de contos e ensaios publicados em revistas diversas e reunidos mais tarde em coletâneas e chega, em Bored to Death, ao ápice da exposição da sua vida conturbada.
Jason Schwartzman interpreta Jonathan Ames (sim, ele usou o próprio nome para deixar claro que era o personagem daquela autoficção), angustiado por não conseguir escrever um segundo livro, lutando para sobreviver com pouco dinheiro, se auto enganando ao consumir vinho branco como uma alternativa para curar o alcoolismo. Um dia, dentro do cotidiano permeado por um editor rico excêntrico (o maravilhoso Ted Dawson) e um quadrinista independente (Zach Galifianakis), Ames decide ser detetive particular e, como o personagem de Paul Auster, segue nessa empreitada munido apenas com a sua paixão por romances policiais.
Enfim, acho que não preciso dizer mais nada sobre a série, só que essa comédia caótica e poética me tornou fã de Ames e passei a procurar desesperadamente seus livros.
A limitação do mercado brasileiro
Aqui temos que fazer um parênteses. Por algum motivo Ames segue sem nenhum livro traduzido para o português. Talvez ele não tenha ganho os prêmios certos, talvez os filmes e séries com o nome dele sejam obscuros demais, talvez ninguém quis apostar nele, o fato é que não há nada dele publicado até o momento. Eu adoraria traduzir um livro dele, mas acho que essa é uma lacuna que não tem a menor perspectiva de ser preenchida.
Então, tenha em mente que os livros que cito aqui, só estão disponíveis para quem tiver uma certa fluência em inglês e, vale dizer, que Ames é um sujeito muito culto e gasta um vocabulário extenso que inclui até alguns termos em francês, então, apesar de ser uma leitura fluída e atual, é algo que deve levar até os nativos a uma busca eventual no dicionário.
Os elementos da literatura de Ames
Apesar de ter estacionado um bom tempo em uma autoficção bem autobiográfica, Ames tem algumas fases até que bem definidas no conjunto da sua obra até aqui.
Mas, é claro que há alguns elementos que são constantes e marcam o estilo do escritor independente do gênero/temática em que ele está explorando. No geral ele faz um tipo de comédia triste. E algo que sempre me impressionou em todos os livros é o quanto ele tem uma voz literária (um “eu lírico”, talvez) muito bem construída.
Ames transmite uma sinceridade brutal em tudo que escreve. Os personagens são falhos, extremamente humanos e cheio de problemas, mas há uma clareza sobre a forma como essas questões são apresentadas. Não há filtro, nem juízo de valor. O alcoolismo, por exemplo, constante em seus personagens é apresentado sem nenhuma condescendência nem ressalva. Mesmo quando o personagem está em um evidente autoengano, ele tem consciência plena dos danos que causa para si e para os outros, mas a chave aqui é que nada disso é tratado como algo “bom” ou “mau”, são meras circunstâncias da vida. As pessoas são o que são no universo de Ames, poços de contradições extremamente carinhosas e livre de preconceitos e julgamentos.
Nesse aspecto o trabalho de Ames me lembra um pouco o de Cristóvão Tezza, em particular a sinceridade quase cruel de O filho eterno.
Outra característica marcante é o encantamento pelo que é fora de padrão. É difícil explicar, mas, em um livro recente dele (que eu vou tratar especificamente logo mais) há uma cena surreal onde o personagem encontra uma ex-namorada que virou usuária de drogas e sem-teto e acabou perdendo as duas pernas. Esse personagem resgata essa mulher, esse torso, e isso culmina em uma cena linda de tão poética em que ele dá um banho na ex-namorada com um carinho e uma admiração tão extrema que chega a ser comovente a poética e o romantismo dessa cena bizarra.
As fases
Ao meu ver, há algumas fases bem claras na bibliografia de Ames.
A fase autobiográfica/autoficcional, que é linda, tem textos ótimos e culmina no fantástico Bored to death. Mas, é preciso aqui acolher todas as críticas sobre o excesso de literatura autorreferente e o quanto esse escritor/protagonista é algo que abunda a ponto de cansar muitos leitores.
Eu ainda defendo que Ames é acima da média, nessa área, mas fica com o flanco aberto para ser visto como mais do mesmo.
Na sequência ele passa a trabalhar seus personagens mais excêntricos (Bored to death é bem uma ponte entre um lado e outro) e produz dois romances extremamente divertidos: The extra man (que virou filme) e Wake Up, Sir!.
E, a fase atual (pra mim o melhor momento desse autor que eu já adorava):
Os romances noir
Tenho a sensação que o noir e o faroeste são gêneros que ficaram tão marcados por uma produção popular maciça que formou-se um certo preconceito que faz livros e filmes nessa linha sempre serem vistos com uma certa ressalva, como se fossem algo menor.
Mas foi justamente nessa paixão pelo noir que Jonathan Ames encontrou um caminho para produzir os que, para mim, são os melhores livros do conjunto da sua obra, tanto em termos literários quanto em termos comerciais.
De novo, a semente de tudo isso já estava em Bored to Death, mas, ali, a parte investigativa era um alívio cômico. O noir em si começou com You Were Never Really Here, adaptado para o cinema por Lynne Ransay (de Precisamos falar sobre Kevin) com Joaquin Phoenix no papel principal.
Aqui saem de cena os personagens fisicamente frágeis, com aparência elegante e sensível e entra o clássico anti-herói americano, o ex-fuzileiro/CIA/FBI (ou qualquer outra organização dessas) repleto de traumas. São personagens de casca grossa mas internamente destruídos e a deriva que são arrastados para situações ridículas de tão complexas.
A série de livros que ele se embrenhou agora (por que nada mais noir do que uma série com um personagem recorrente) apresenta o que de fato se esperaria de um noir escrito por Ames. A man named Doll e The wheel of Doll trazem como personagem principal o detetive particular Happy Doll (literalmente Boneca Feliz, nome que o pai do personagem lhe deu por vingança por culpa-lo pela morte da mãe no parto).
As tramas em si são muito bem conduzidas, com aquele ritmo ideal de reviravoltas, cenas de ação e violência. O grande diferencial é o modo peculiar e poético de Ames ver o mundo.
Por exemplo, a descrição incrível da relação entre Happy e seu cachorro que diz que, para o mundo, eles se apresentam como dois solteirões vivendo juntos, mas, em segredo são amantes (um amor poético, por favor, sem pensamentos torpes).
Ou momentos de autoanálise como quando Happy atende o telefone e ameaça o cara que mandou matá-lo dizendo que ele ainda estava vivo e ia pegar ele; e, na sequência, confessa para o leitor que sabe que aquele foi um surto despropositado de macheza que tirou seu elemento surpresa, mas “foi a cocaína falando”.
Enfim acho que falei demais já, mas tudo isso foi para dizer o quanto fiquei feliz de reencontrar Ames na sua melhor forma nesses dois livrinhos da série Doll que ele lançou no final do ano passado. Se você sabe ler em inglês, leia algum dos livros de Ames e sigo firme na torcida para um dia ver algum dos livros dele publicado por aqui.
Pintores
A seleção dessa e das próximas semanas serão obras de Marc Chagall em homenagem a exposição dedicada a ele montada no CCBBSP.
Esse é um estudo bem do início da carreira do pintor, separei ele porque guarda um certo “formalismo” anatômico que desaparece ao longo da obra dele.
Peguei vários autorretratos dele em momentos diferente. É interessante ver como ele muda radicalmente o estilo de trabalho ao longo dos anos. Aqui, apesar dos recortes bem modernistas, ainda há um rigor com a forma.
Aqui já começamos a ver o que normalmente é associado ao artista, um trabalho mais expressivo, com um desenho mais solto e uma construção em que a cor tem um papel quase mais importante do que o figurativo em si.
Por fim, a temática judaica que está presente ao longo de toda a obra do artista. Um destaque aqui é a intensidade das cores, algo que é muito forte nos quadros de Chagall e quem for ao CCBB terá o prazer de observar ao vivo.
P.S.: a batalha pelo novo twitter
Parece que todo mundo está tentando descobrir o que vai ser o novo twitter, já que o original segue empilhando infortúnios. O Substack (essa plataforma de newsletter que eu uso) criou o Substack Notes. Não vou mentir, eu já não era um grande fã do twitter, tão pouco me interessei por esse notes. Das redes sociais, a que mais me agrada é o Instagram (me siga lá @oliboni_) por vários motivos, mesmo assim eu faço um uso bem pontual da rede. De qualquer forma, estou no tal Notes quando lembro de postar algo lá.
Quero ler Ames 🥹